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Correndo sob o sol da meia noite

  • Foto do escritor: Denise Polonio
    Denise Polonio
  • 17 de jul. de 2015
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de jan. de 2022

Este post é dedicado ao meu pai, Ethelwold Polonio (16/08/1928 - 03/06/2015).

Após vinte e três horas de viagem e várias escalas em aeroportos da Europa, finalmente coloquei os pés na cidade de Tromso, na Noruega. Era noite e fazia frio, apesar do sol e da estação de verão que, naquele lugar, mais se parece que com um inverno impiedoso para alguém que, como eu, vive em um "país tropical, abençoado por Deus" e naturalmente bonito. Neste local do globo terrestre, em função de suas coordenadas geográficas, o sol brilha por um longo período que se estende das primeiras horas do dia até altas horas da noite. Esse fenômeno ocorre somente numa época do ano e é conhecido como solstício de verão. A passagem do dia vinte para o dia vinte e um do mês de junho é o dia mais longo do ano com um sol que brilha preguiçosamente para além da meia noite e provoca a impressão de um dia interminável gerando assim, uma grande confusão em nosso relógio biológico e consequente revolução em nosso ciclo circadiano.

Nesta pequena cidade de pouco mais de sessenta mil habitantes, reparei já no aeroporto, num grande número de passageiros que calçavam seus pés inchados em tênis de corrida. Este importante item do vestuário para qualquer corredor, amador ou profissional, se constitui num poderoso veículo de expressão além, é claro, de ser responsável em grande parte pela boa performance atlética de corredores que submetem seus pés a um quase massacre em percursos de longas e médias distâncias. Foi então que, a partir desse signo poderoso, ao pisar naquele longínquo território viking, olhares de cumplicidade e identificação se estabeleceram e nos transformamos todos em indivíduos de uma mesma tribo.

A chegada ao hotel, em um horário em que todos dormiam, menos o sol e uma gentil recepcionista, foi como a conquista de um território pouco familiar e, ao final da longa jornada em aviões e aeroportos, um jantar meio improvisado foi suficiente para preencher o vazio do estômago que quase produziu eco ao digerir uma deliciosa salada de macarrão acompanhada de um ensopado de Cod Fish, prato bastante popular por aqueles lados. Pela janela, a vista dos fiordes com reflexos de um sol pálido e insuficiente para aquecer a pequena vila de pescadores cravada lá onde o vento faz curva, foi também um alimento para a alma.

Do quarto com vista para o mar, a visão de um dos cartões postais da cidade, a Ponte Tromsobrua que liga a ilha com a parte que fica no continente. Essa emblemática ponte e a pequena igreja Artic Cathedral em concreto armado, resultam num conjunto arquitetônico equilibrado e harmônico, o qual me provocou reflexões poéticas e um tanto quanto perturbadoras. Esta ponte de elevação moderada é uma das partes do percurso da maratona que mais preocupa os corredores. Seu ponto de fuga, na perspectiva da ilha para o continente, coincide com a pequena igreja. Mera coincidência? Certamente não. Conheço meus pares e sei que na imaginação dos arquitetos, reside não só o desejo de conceber e desenhar espaços, como há também o desejo de se criar narrativas que transformam suas criações em cenários e os habitantes num elenco anônimo representando a cada dia, um espetáculo inédito para surpresa e deleite dos que observam. Sendo assim, uma intenção não escancarada se revelou para mim no que entendi como o caráter de transitoriedade contida na ponte que, por sua vez, leva à permanência, representada pela igreja localizada exatamente no ponto de fuga de nosso olhar. Ou, de um modo mais prosaico, é a luz no fim do túnel ou o pote de ouro no final do arco-iris e outras lúdicas metáforas que alimentam nosso incosciente coletivo desde sempre.

Às vinte horas e trinta minutos, do dia vinte de junho de 2015, com os termômetros marcando oito graus celsius, cerca de 870 corredores largaram para os primeiros quilômetros da maratona e, aos poucos a euforia inicial foi se dissipando e dando lugar a uma preocupação que se intensificava à medida em que avançávamos no percurso. Percorridos os três primeiros quilômetros chega-se a temida ponte mas, ao percorrê-la com certa facilidade, cheguei a pensar que o esforço para alcançar o paraíso (a igreja, no caso) nem foi tão grande e me enchí de uma autoconfiança tão útil quanto perigosa.

No ápice desta subida, fui completamente seduzida por uma luz dourada refletida nos vitrais da igreja que se apresentou gentil e solenemente aos primeiros passos de uma descida regenerativa fazendo com que eu entrasse num estado de pura epifania! A partir deste momento seguí em frente movida por uma força bárbara, pronta para conquistar um território tão exótico quanto inusitado.

Embora concentrada, prestei atenção na paisagem e, num trecho plano já no continente correndo em uma rodovia costeira, tive a impressão de estar invadindo quintais de casas cujos moradores saudavam os destemidos atletas com um estranho grito de guerra que eu nunca ouvira antes. Alguns ofereciam sucos, cafés ou chás servidos em garrafas térmicas e outros mais ousados, convidavam para um brinde com seus canecos de cerveja ou taças de vinho em mesas cuidadosamente montadas à beira do percurso. Alguns vizinhos se reuniam em festas improvisadas e colocavam música em volume alto que rapidamente se dissipava devido a um vento frio e cortante que em certos momentos chegou a incomodar.

No retorno à ilha, quase perdi o fôlego ao olhar o horizonte emoldurado por montanhas recobertas parcialmente por neve e iluminado por oblíquos raios de sol que às 22h aproximadamente, criavam rastro dourado no mar.

De costas para a igreja, mais uma vez a subida da ponte é o caminho para retornar à ilha e ao final de mais dois quilômetros, por volta do vigésimo quilômetro, me ví diante do hotel onde estava hospedada. Procurei encarar esta visão como uma miragem e tratei logo de afastar ideias subversivas de decretar missão cumprida a esta altura, onde apenas 50% da distância fora vencida.

No centro da cidade, muitas pessoas ainda permaneciam nas ruas, restaurantes e bares, algumas interessadas nesses loucos que correm outros nem tanto, apenas continuavam em seus programas etílicos de um ensolarado sábado à noite e nos olhavam com certa perplexidade ou indiferença.

Saindo do centro, um longo trecho pouco habitado, com muitas ondulações em direção ao aeroporto e a partir do km 25, surgem os meio-maratonistas que por terem largado algum tempo depois dos maratonistas ainda ostentavam uma animação já ausente àqueles que como eu, ainda se encontravam há muitos e árduos quilômetros da linha de chegada. Em torno do quilômetro vinte e oito, fui surpreendida ao cruzar com o queniano Antony Mugo que venceu a maratona em 2h26'14" seguido pelo australiano Grant Schmidlechner com o tempo de 2h39'14".

Meu "pace" que até o quilômetro trinta da maratona oscilou entre 5:30" e 6:30", começou a ficar mais lento e, no quilômetro trinta e sete atingi o meu pior desempenho durante toda a prova, chegando ao máximo instantâneo de 7:22". Com um ritmo arrastado e buscando forças nas entranhas de meus músculos, tentei convencer minhas pernas e meu joelho fraquejante, de que o final estava próximo quando então avistei logo à frente a bandeira do Brasil estampada na camiseta de um atleta de Brasilia, Carlyle Vilarinho, com quem emparelhei e consegui trocar algumas poucas palavras durante aproximadamente a distância de um quilômetro que corremos lado a lado e nos encorajamos mutuamente.

Uma motivação súbita me fez acelerar rumo aos quilômetros finais e, numa espécie de transe, tive acesso a emoção da recente e dolorosa perda de meu pai, o qual cruzou a sua linha de chegada faltando dezessete dias para esta maratona. Esta lembrança me fez enxergar que todo esforço vale a pena e que todo caminho nem sempre suave é o que realmente importa. O fim pode não ser exatamente o pote de ouro ou a luz no fim do túnel, mas a idéia de um final, certamente nos cria a perspectiva de continuar a trajetória, fazendo com que cada um chegue a seu tempo e onde for para se chegar.

 
 
 

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