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Minha corrida (será...) Inesquecível

  • Foto do escritor: Denise Polonio
    Denise Polonio
  • 20 de ago. de 2020
  • 6 min de leitura

Atualizado: 5 de jan. de 2022

(O conteúdo deste post é a minha coluna publicada na Revista O2, edição 195, Julho-Agosto de 2020).

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Não sou uma corredora de grandes e épicas conquistas, mas tenho algumas poucas que colecionei e guardei numa caixa, junto com as medalhas recebidas ao final das provas. Após quatro maratonas, várias meias-maratonas e outras provas menores que aumentaram o peso de minha coleção, resolvi que já era tempo de buscar territórios diferentes daqueles intermináveis e às vezes monótonos percursos percorridos no asfalto.


Atravessar a Argentina em direção ao Chile pela Cordilheira dos Andes, num trajeto de 100 quilômetros por trilhas, divididos em três trechos, seria para mim, como o mergulho de Alice no país das maravilhas, ou seja, sair do asfalto e mergulhar num mundo fantástico. Todos sabem que El Cruce é uma espécie de meca dos corredores na modalidade de corrida de montanha a qual, além do preparo físico de no mínimo seis meses, exige também um preparo mental e controle emocional já que é uma prova onde muito pode acontecer. Ainda que a ideia de ficar diante do desconhecido me provocasse um certo medo, este não foi maior do que o fascínio causado pela possibilidade de me lançar à algo que reconecta à natureza e toda a sua imprevisibilidade.


Inscrição feita, comecei a treinar com um grupo de corredores e treinadores específicos para a modalidade e, logo no primeiro mês, uma antiga lesão muscular na coxa ressurgiu me fazendo parar por 5 semanas e assim tratar a região afetada com muita fisioterapia e acupuntura. De volta aos treinos e aparentemente curada da lesão, senti na pele o verdadeiro significado de um cabra da peste. Esta expressão nunca fez tanto sentido para mim, já que subir tão somente, não basta para quem quer chegar ao topo. É preciso, como as cabras das montanhas, subir penhascos inclinados e rochosos, com muito solo irregular e cheio de obstáculos para encontrar, não exatamente as flores e musgos com o que estas cabras se alimentam, mas para buscar aquilo que alimenta a nossa alma de corredor.


A última prova treino, foi a KTR - Etapa de Ilhabela- 21K, a qual corri faltando apenas três semanas para El Cruce-2019. Chegamos em Ilhabela no dia anterior ao dia da prova, que aconteceu num sábado úmido e chuvoso. As provas da KTR são famosas por seus locais desafiadores e trilhas técnicas que trazem o visual como uma espécie de recompensa por todo o esforço. Participar desta prova, seria para El Cruce, uma espécie de vestibular, ou seja, a oportunidade de testar estratégias de alimentação e hidratação durante o percurso, verificar a eficiência e necessidade dos equipamentos que fazem parte de uma lista que inclui luvas, bastões, casacos de chuva e para frio, além de itens de segurança e primeiros socorros que cada corredor deve carregar consigo, sem os quais não é permitida a sua participação.

A noite anterior ao dia da prova, para mim, é sempre mal dormida dada a ansiedade que fico e que me faz levantar da cama inúmeras vezes para fazer um check list interminável.

A concentração na largada junto a amigos corredores, todos mais experientes que eu, transmitiu segurança e cumplicidade. Dada a largada, seguimos juntos até o momento de cada um encontrar o seu ritmo tornando inevitável a separação, assim como as conversas e sorrisos aos poucos são substituídos por olhares atentos ao chão e o silêncio só é rompido pelo barulho das passadas nas pedras, galhos e folhas, além do som de nossa própria respiração. Segui confiante e com a inocência de quem ainda não tinha a menor ideia do que iria encontrar pela frente e, no terceiro quilômetro do percurso de 21k, pisei em falso num galho. Torci o tornozelo esquerdo. Uma dor aguda, irradiou por todo o pé subindo em direção ao joelho. Parei um pouco e massageei o local mas decidi continuar, afinal, cabras da peste são valentes, destemidas e capazes de sobreviver em meio a adversidades, de acordo com a expressão nordestina.


A meta dessa prova é chegar ao pico do Baepi, com 1048m de altitude, o sétimo maior pico da Ilha, e voltar para a praia. As trilhas íngremes e encharcadas, quando não eram formadas por cascalhos, eram de pedras ensaboadas ou caminhos de lama. Com o tornozelo latejando de dor e mancando, segui subindo, subindo e subindo. Subi com a fé de um peregrino e recebi olhares de compaixão de corredores que notaram algo de estranho em meu semblante, o que em nada ajudou a controlar o sentimento de ira e revolta comigo mesma, por ter me permitido continuar. Foram muitos os momentos em que blasfemei contra todos os santos e elementais da floresta. Mas estes não estavam de brincadeira e mostraram logo adiante uma parede vertical num ângulo de noventa graus com fendas que se apresentavam como uma espécie de degrau talhado pelo capeta. Escalei essa e mais duas ou três paredes menores até chegar ao topo e pegar uma pulseirinha como garantia de ter cumprido a etapa. Dei uma rápida olhada na vista mas as nuvens não permitiam que se enxergasse nada além de uma paisagem turva e desfocada, sem horizonte definido.

Comecei a descer achando que o pior já tinha passado, mas todos sabem que a descida pode ser tão ou mais complicada que a subida, especialmente quando esta se dá por trilhas já pisoteadas por outros corredores fazendo com que o atrito seja quase nulo. Escorreguei vários trechos sentada, preservando a perna cujo tornozelo não servia de apoio, me agarrando a cipós, galhos e pedras para tentar conter a velocidade da descida. Nenhuma experiência transcendente surgiu desse momento a não ser a sensação bruta de que eu era uma simples massa em deslocamento no espaço de um morro abaixo. Houve trechos da descida em que o bastão atrapalhou mais do que ajudou e, nesses momentos, eu o lancei à frente o resgatando assim que emparelhasse com ele. Ainda tive forças para comemorar lançamentos em que o bastão parou fincado no tronco de árvores caídas no chão.


No final da descida, um trecho reto seria a chance de aumentar um pouco a velocidade e assim recuperar tempo. Mas o tornozelo doía e não ajudava, foi quando então uma espécie de tiro de misericórdia me acertou e eu torci o mesmo pé pela segunda vez, faltando ainda quatro ou cinco quilômetros para cruzar a linha de chegada. Fui ao chão gritando de dor e sem saber o que fazer, culpei o universo por me encontrar naquela situação. Não sei quanto tempo fiquei no chão, sozinha, chorando sem a sorte de algum corredor próximo para quem eu pudesse pedir ajuda. Muita lama em todo o corpo e especialmente nas luvas, que nem podia imaginar como sacar o celular para pedir socorro. Levantei e antes que o tornozelo esfriasse, eu fui. Mancando e sem conseguir conter as lágrimas, eu fui. Ao final da trilha, a surpresa de ter que atravessar um rio, com pedras em seu fundo. Do outro lado da margem, um garoto da organização, estendia a mão e sugeria as pedras que eu deveria pisar. Pisar? Não sei, não me perguntem como atravessei aquele maldito rio, mas cheguei do outro lado e não olhei para trás, olhei para frente e vi na saída da trilha, já no asfalto, uma ambulância parada, pronta para prestar socorro. Confesso que pensei em entrar, mas desisti ao saber que a distância que me separava da linha de chegada, era menos de 3 quilômetros de um percurso em declive, seguido de outro reto, pelo asfalto. Então, mais uma vez, eu fui. O bastão nesse momento, ajudou a dar apoio ao lado comprometido. Entrei na praia e mais alguns metros de areia, cruzei a linha de chegada.


Sem muito esperar, tomei um banho demorado a fim de me livrar da lama depositada em todas as células de meu corpo. Evitando olhar para o tornozelo inchado e vermelho, enquanto jantava com os amigos que também tinham feito a prova, fui surpreendida com a notícia de minha colocação em terceiro lugar na categoria. Feliz e sem muito acreditar em tudo que tinha acontecido, comemorei com os amigos o troféu que recebi. No dia seguinte teria que fazer outra corrida para completar a meta de treino para o final de semana, mas não preciso dizer que, desta vez, eu não fui. De volta a São Paulo, segui direto para o pronto socorro de um hospital e, sentada numa cadeira de rodas após ser avaliada por um ortopedista acompanhado do raio x, recebi transtornada a sentença de minha tragédia. Os entorses resultaram numa fratura fibular, acompanhada de lesões ligamentares grau 2 e outras complicações variadas na região.


E foi assim que El Cruce, aquela que seria minha prova inesquecível, se tornou ainda um sonho a ser realizado. Ela ainda não aconteceu, mas já rendeu uma boa estória.



Parei de correr por um tempo, mas não de treinar (ao menos os membros superiores).

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