Minha Viagem ao passado das Américas
- Denise Polonio

- 7 de nov. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de jan. de 2022

São Raimundo Nonato, sudoeste do Piauí, cidade onde vive a arqueóloga brasileira Niéde Guidon, uma brava mulher. A primeira vez que li sobre o assunto foi no jornal, há pelo menos vinte anos e a matéria despertou minha curiosidade. Para muitos, ou talvez alguns, aqui neste imenso aglomerado de concreto e asfalto onde vivo desde que nasci, esse estado do nordeste parece não ter ocupado muito espaço no imaginário dos que sonham com praias paradisíacas, onde o pitoresco e o aspecto rústico compõem apenas um cenário, em alguns casos pouco autêntico, fartamente vendido e explorado por agências de turismo em seus editoriais cafonas.
Na escola nos foi ensinado que o Piauí é o estado com a menor faixa litorânea dos estados brasileiros e apesar de sua área territorial extensa, boa parte de suas terras estão no semiárido, aquele tipo de clima onde a chuva é escassa e as temperaturas altas o ano todo.
Caatinga. Agreste.
Palavras cuja sonoridade me coloca em estado de catarse. Adoro ouvi-las. Particularmente quando pronunciadas com sotaque legitimamente nordestino. Na verdade, acho que só mesmo os nativos dessas regiões têm propriedade para pronunciá-las de um jeito que é como se o corpo inteiro sentisse o impacto de seus significados. Sinto um arrepio de calor e uma secura nas entranhas. Imediatamente me lembro da cachorrinha Baleia e a saga daquela família fugindo da seca à procura de um lugar melhor para viver, acessível talvez somente nos sonhos de Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, o homem rude que não consegue expressar seus pensamentos com palavras. Drama, abandono, solidão, pensamentos imprecisos, sonhos delirantes, injustiças, choro sem lágrima, todas essas sensações percorrem minha alma e meu corpo a partir da lembrança do romance de Graciliano Ramos, livro que li por exigência da escola, aos 14 anos, ainda muito nova para alcançar a dimensão psicológica e o ciclo de esperança e desesperança que colocava aquelas pessoas em marcha por suas Vidas Secas.
Não sei ao certo o que me fez abandonar momentaneamente o presente para partir em busca do tempo perdido no Parque Nacional da Serra da Capivara, um pedaço de caatinga do tamanho da cidade de São Paulo. Um verdadeiro museu a céu aberto onde a obra maior é a própria natureza que é também suporte da maior concentração de pinturas rupestres do mundo, feitas por remotos forasteiros que se lançaram à aventuras em busca da sobrevivência assim como a família de Fabiano e de tantos outros retirantes, vítimas do clima e do descaso dos próprios humanos. Foi este lugar que desbancou teses de que a ocupação do continente americano datava somente de 12 a 20 mil anos. Após escavações feitas por Niéde Guidon, que começaram na década de 70 e levaram mais de 10 anos de pesquisa, foram descobertos vestígios do homo sapiens que datam de 60 mil a 100 mil anos, dado que levantou a discussão referente a teoria arqueológica sobre a vinda do homem ao continente americano que teria saído da Ásia e atravessado a pé o estreito de Bering, entre 12 e 15 mil anos atrás, sendo esta a única hipótese até então, que explicaria a ocupação do globo terrestre a partir das correntes migratórias.
Posso dizer que estar num lugar como esse é o equivalente a um mergulho no tempo e na história da humanidade.
Há cerca de 440 e 360 milhões de anos, tudo era mar onde hoje é sertão. Difícil imaginar, mas os paredões rochosos que a serra orgulhosamente ostenta, são formações do período pré-cambriano e portanto, foram originados debaixo da água. Fósseis marinhos foram encontrados como prova de que tudo isso, que é sólido e seco, esteve submerso um dia e não se desmanchou na água, nem no ar.
Todas as visitas que fiz ao parque, fui acompanhada por um arqueólogo que trabalhou com Niéde Guidon, nascido numa comunidade conhecida como Zabelê, dentro da área que finalizou sua demarcação em 1990, como Parque Nacional da Serra da Capivara e foi declarada como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco em 1991. Filho de uma família com 11 irmãos, foi o único que entrou para a universidade onde se graduou e está para concluir seu mestrado sobre megafauna. Apesar de minha curta permanência nesse imenso sítio arqueológico, posso afirmar que a experiência que tive acompanhada de alguém, cuja família fora obrigada a sair do local onde vivia para dar lugar ao parque, me causou inquietações.
Que esse importante e valioso patrimônio histórico e cultural necessita de cuidados especiais e da atenção de todos é algo irrefutável mas, lastimavelmente não é o que de fato se verifica. Se por um lado, o parque se viu livre da deterioração que aquelas famílias de roceiros causavam ao meio-ambiente e a tudo o que de mais valor é encontrado ali, comprometendo por suas próprias necessidades de sobrevivência as pesquisas abraçadas por pessoas obstinadas que devotam suas vidas à ciência, por outro lado, um pequeno e ágil roedor conhecido popularmente por mocó, ameaça todas as inestimáveis e indubitáveis provas deixadas por nossos irmãos primitivos como registro de passagem e permanência naquele mesmo solo onde, milhares de anos depois, pude chegar através de meios de transporte muito mais sofisticados do que a sapiência de nossos antepassados sequer poderia alcançar.
Além disso, uma outra questão me levou a enxergar o quanto podemos ser ambíguos, até mesmo controversos em nossas ações. Em nome da preservação da memória e da necessidade de documentação de um humano pré-histórico, condenamos outros humanos a deixarem para trás a sua própria história. Não é uma questão simples de se resolver e não vejo como não haver perdas e sacrifícios por parte dos envolvidos direta ou indiretamente no quê, ao final das contas, diz respeito a todos nós.
Conduzida pelo jovem arqueólogo, com a força de meus pés e de minha curiosidade, percorremos trilhas abertas às duras penas por muitos que contribuíram para a existência desse parque. O período de minha visita foi no auge da seca e sendo assim a vegetação que vi, equivalia ao esqueleto retorcido de um corpo que entrara em decomposição e, para meus olhos incautos, sem qualquer possibilidade de recomposição.
Andamos por caminhos de terra craquelada de um vermelho incerto, ou seria laranja? O bafo quente e uma luz de doer as vistas me remeteram novamente à família de Fabiano. A profusão dos registros nas paredes de pedra calcária, aos poucos foram se tornando familiares e diante destas arrisquei interpretações tão divertidas quanto improváveis as quais, por muitas vezes, fez sorrir o meu amigo arqueólogo.
Quanto cabe em uma palavra? E quando elas faltam? Quando o menino mais velho pergunta para Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, o que é inferno, recebe palavras insuficientes e um cascudo como resposta. O que fazemos quando o verbo não se faz presente? A necessidade de se comunicar e de se expressar através de qualquer linguagem é algo intrínseco à natureza humana. Aqueles desenhos contam histórias sobre nós mesmos. De onde viemos? Qual o propósito da vida? Perguntas estas que nos acompanham desde que adquirimos a consciência da finitude e que nos fazem olhar para além de nossos próprios umbigos. Jorge Luís Borges, em seu percurso metafísico e metalinguístico pelas galerias hexagonais no conto A Biblioteca de Babel, fala de um hexágono secreto, onde estaria hospedado o livro com o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade e na busca incessante por alguém que soubesse decifrá-lo. Ler um texto é tentar decifrá-lo, diz Borges. Mas se considerarmos que o próprio mundo está impregnado de linguagem, a própria realidade poderia ser considerada como uma grande biblioteca cheia de textos à espera de quem os decifre.
Estou aqui escrevendo este breve relato sem qualquer compromisso, movida exclusivamente pelo meu puro deleite e porquê não quero ver minhas impressões sucumbirem a um inevitável e impiedoso esquecimento. Também porquê, ao entrar em contato físico com as entranhas da terra, percebi o quanto a noção de tempo pode ser relativa e como somos parte de algo muito maior do que nossos propósitos pessoais e compromissos diários nos permite enxergar. Niéde Guidon, escreveu no prefácio do livro O Paraiso é no Piauí, ano de 2010, da jornalista Solange Bastos:
“Porque estou fazendo isso? Porque sofrer? Porque sede, calor, poeira, fome, desconforto, perigo, risco de vida? Pelo salário ou porque quero fazer uma carreira científica, técnica, vencer em minha profissão, quero ser melhor? Quero fazer o que nunca ninguém fez? Ou será que quero gravar o meu nome, minha saga na pedra, como aqueles homens pré-históricos que deixaram sua história gravada em todo o nosso Parque? Quais respostas vocês escolhem?”
Em entrevista para um programa de televisão, em 2014, pediram a sua resposta para o que ela mesma sugere que o leitor conclua. Confesso que foi a explicação mais simples e bela que eu já tive a chance de ouvir.
(NG): “Eu tenho que viver até morrer, então eu procuro viver da maneira mais agradável, mais divertida. (...) Eu fiz isso de uma maneira muito egoísta, para viver e para me dar prazer."
Ainda bem que o prazer de Niéde Guidon é a realização de um sonho que todos nós podemos sonhar juntos, ajudar a concretizar e que pode também nos proporcionar muito prazer.
O link que deixo aqui é do vídeo que produzi de "modo caseiro", com as imagens que colhi no Parque, em outubro de 2021. Ao fazê-lo, pude revisitar cada um dos lugares em que tive o privilégio de estar por alguns dias. Espero que vocês gostem e que possam sentir um pouco do mesmo prazer que eu senti ao estar lá.
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Em frente! Beijos.
Dentre muitos responsáveis por suas inspirações e curiosidades, a pessoa que mais te definiu sem conhecê-la (e não sabe o que perdeu ou está perdendo) foi Niéde Guidon, tenho cá minhas duvidas se não foi você que soprou no ouvido dela: "Eu tenho que viver até morrer, então eu procuro viver da maneira mais agradável, mais divertida." Denise, as vezes Sinhá noutras Rosa Motta subindo a Brigadeiro...noutras pedalando por ai.
Mais uma vez muito obrigado por compartilhar suas aventuras, confesso que nesta fiquei com pó até as tampas e de pegar Vidas Secas para reler.
Com seu texto fiquei pensando se: voltar ao passado não seja a melhor maneira de chegarmos até ali!