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Memória na ponta da agulha

  • Foto do escritor: Denise Polonio
    Denise Polonio
  • 24 de mai. de 2019
  • 7 min de leitura

Coisa difícil viver com medo, não é? Assim vive um escravo, disse o replicante para o ex-policial na pele de Harrison Ford, no filme Blade Runner (1982) e esta cena nunca mais abandonou o meu imaginário e o de muitos da minha geração que saíram do cinema com a consciência turva, desconcertados com o questionamento sobre o direito à vida, elegantemente proposto pelo filme. O ano de 2019 é o tempo futuro onde uma forma de vida superior, capaz de subjugar nossa espécie, foi criada a partir do conhecimento humano e ao ameaçar nossa própria existência nos elevou à categoria de Deuses provocando reflexões sobre o dilema da Gênese.

Independente de nossas crenças é curioso observar que chegamos ao futuro profetizado pelo filme e em tempo presente, não somos ameaçados por estas espécies de super-humanos, mas acredito estarmos subjugados a uma forma de existência a qual arriscaria dizer, ao invés de nos libertar nos mantem aprisionados em bolhas de isolamento. Enquanto no filme, a revolta dos replicantes se dá a partir do desejo por liberdade e da consciência da própria servidão aos humanos, nós que deixamos de ser ficção para nos tornar realidade, estaríamos aprisionados a uma espécie de corrente onipresente possibilitada através de sofisticados artefatos tecnológicos que ampliam nosso universo de possibilidades, porém nos sequestram o tempo da experiência real.

Diante dessa ambivalência, penso na fragilidade da condição humana e nos diversos níveis de significado de liberdade e na dor que venho enfrentando desde que iniciei os treinos para realizar a travessia da cordilheira dos Andes, prova na qual estou inscrita e que ocorrerá em dezembro deste ano. Retomei os treinos com disciplina e dedicação no mês de abril, após ter passado nos três primeiros meses do ano, por momentos especiais e singulares que desafiaram meu intelecto, minha sensibilidade e minha autocrítica. Entretanto meu corpo não acompanhou a velocidade de mudança do meu estado de consciência e, em movimento retrógrado, começou a enviar sinais de alerta que com empenho, tentei ignorar. Como já mencionei anteriormente, meu limiar de dor é alto e isto faz com que certos problemas se agravem tornando mais difícil e penosa a recuperação a cada etapa em que esta (e todas as demais dores) se manifesta. Tentei alguns paliativos para resolver uma dor antiga que passa longos períodos adormecida, mas quando desperta parece não querer me abandonar provocando uma revolução verdadeiramente anárquica em meu corpo e em minha mente, transformando numa promessa pueril a manjada citação latina Mens sana in corpore sano.

Há sete anos tive uma lesão no conjunto de músculos isquiotibiais, localizados na parte posterior da coxa esquerda, a qual deixou uma cicatriz e como todas, é sabido que aí sempre será um ponto fraco para o qual se deve realizar uma série de medidas preventivas e constantes para que esta dor não volte a incomodar. Na ocasião, tratei a lesão com algumas sessões de fisioterapia e deixei ao acaso a vontade deste problema voltar a se manifestar e eis que então, nas primeiras semanas de treino, ele ressurgiu com toda a sua potência. Buscando não valorizar a dor que sinto até mesmo durante um simples trote regenerativo, continuei a cumprir a planilha de treinos até resolver prestar mais atenção nos sinais que o corpo envia à mente e percebi que esta forma particular de tentar bloquear o problema fingindo que ele não existe ou no mínimo, não atribuindo a devida importância que o mesmo merece, se constitui num mecanismo pouco eficiente e de certa forma, num heroísmo hipócrita. Esta conclusão me faz voltar ao herói e anti-herói do filme e a partir disso começo a achar que ao não admitir minhas fragilidades ou ainda, ao não me colocar diante delas, não sou elevada à categoria de super-humano, pois até ao androide, o filho pródigo que goza de inteligência e humanidade equivalentes à de seu caçador, ao final não lhe será concedido mais tempo e, embora seja uma pena, não vai viver. Mas afinal quem vai? Esta frase arremessada em meio à chuva, junto com uma arma para o detetive Deckard numa das cenas mais emblemáticas do filme, ficará para sempre tatuada em minha memória.

Foi então que aceitei o inexorável e decidi iniciar um trabalho corporal mais específico, com o auxilio de um profissional que é também da tribo de corredores, cuja experiência e amplo conhecimento tem me proporcionado não apenas um alivio para a dor, como também o desenvolvimento de uma consciência física que fez aflorar imperfeições e incapacidades, mas ao mesmo tempo revelou um caminho senão para superá-las, ao menos para conviver pacificamente com elas.

Satisfeita com a inclusão desta nova atividade física em minha rotina e acreditando ser o suficiente para aplacar a dor, sigo com mais duas amigas corredoras para um treino a ser realizado no parque Anhanguera, um parque municipal a noroeste de São Paulo no bairro de Perus, onde trilhas íngremes e de mata semifechada nos aguardava com muitos galhos, folhas, buracos e pedras no chão. No início da última volta, ou seja, faltando muito pouco para concluirmos o treino de oitenta minutos, uma pisada em falso numa maldita de uma fenda adornada por uma pedra, me derrubou no chão de onde me levantei com a ajuda de uma de minhas parceiras desta e de outras corridas. A torção do tornozelo produziu um inchaço na lateral do meu pé esquerdo, ou seja, o mesmo lado onde já tenho por hóspede minha antiga lesão muscular. Por não ter produzido, ao menos aparentemente, consequências maiores além de uma nova dor com a qual teria de lidar, compareci aos treinos seguintes correndo, mas terminei mancando sem conseguir disfarçar a dor e a decepção de não ter conseguido superar o problema alguns dias depois da torção. No treino seguinte, o treinador ao ver o meu semblante nada sereno ao término da sequência de seis tiros de um quilometro, sugeriu o tratamento medicinal milenar com uma acupunturista, velha conhecida de muitos corredores, sendo ela também uma corredora no alto de seus sessenta e nove anos de idade, famosa por sua falta de clemência com dores alheias. Receosa e ciente de que não conseguiria continuar a correr naquele estado, marquei sessão num sábado de manhã, horário em que geralmente treino no campus da USP.

Chegando ao local de minha execução, fui recebida por uma senhora oriental de baixa estatura e sorriso largo a qual me encaminhou diretamente para o quarto onde me tornaria vítima de uma espécie de tortura consensual. Deitei-me seminua na cama alta forrada com um papel branco sobre o qual, ao final da sessão, deixei impressas as marcas de meu suor principalmente no local onde apoiei a palma das mãos.

Após ouvir atentamente ao resumo histórico das dores físicas que venho colecionando durante a vida, esta honorável senhora começou a apalpar as minhas carnes como se estivesse num campo minado procurando com as mãos a origem de minhas dores e a cada descoberta, uma agulhada. Em algumas, a dor irradiou circularmente como se ela estivesse espetando o núcleo de um átomo provocando assim um movimento frenético em sua eletrosfera. Em outras, a dor foi tão aguda que tive a impressão de que estas agulhas buscavam estabelecer algum tipo de contato com uma nave mãe onde o meu corpo seria o responsável pelo envio de sinais através de descargas elétricas. Não sei se consegui atrair a atenção de alguma nave mãe, mas o fato é que uma espetada no alto da coxa provocou uma descarga elétrica ao longo de toda a minha perna chegando ao calcanhar como se eu me transformasse naquele momento, numa espécie de para-raios às avessas capaz de irradiar corrente elétrica ao invés de absorvê-la.

Quase ao final dessa batalha contra a dor, minha suave algoz apalpando com a ponta dos dedos a região lombar logo abaixo do cóccix, chega à altura do osso sacro e detecta uma fratura adquirida há mais de 35 anos a qual eu desconhecia por completo e que, segundo ela teria sido a responsável por certos desvios em minha postura e em minha forma de pisar e sendo assim, responsável também por muitas de minhas dores. Ainda surpresa e sob impacto desta descoberta, ao ser questionada por ela sobre os esportes que pratiquei na infância e na adolescência, recebi uma agulhada na memória que fez com que eu viajasse no tempo voltando à escola ginasial, como Anton Ego que no filme Ratatouille volta à mesa de sua infância ao apreciar uma iguaria com um gosto que lhe era familiar, preparada por um chef nada convencional. E foi assim que com essa agulhada lembrei-me de um tombo que tive ao executar um salto sob um aparelho de ginástica olímpica chamado plinto piramidal e na saída deste, ao invés de cair em pé, escorregar e cair sentada no colchonete o qual, dada a altura do salto, não fora suficiente para amortecer a queda. Senti meu esqueleto estremecer com o impacto, mas minha resistência à dor parece ser atávica e eu pouco me importei com ela na ocasião.

Um pouco chocada com o que acabara de ser revelado e ao mesmo tempo me sentindo estúpida por desde sempre ter negligenciado tantas dores, volto para casa resignada e mais uma vez convencida de que somos resultado de um punhado de coisas que nos acontecem, algumas alheias à nossa vontade, outras não e que somos também um todo constituído por partes onde cada uma delas desempenha um papel responsável por manter nosso corpo e mente em harmonia, assumindo sem pudor o ideal mais do que clichê contido nesta frase.

Ainda em referência à essa questão, costumo dizer aos meus alunos na faculdade, que ao se pensar a arquitetura deve-se buscar em suas partes algo que reverbere no todo. Que todas as etapas para uma construção se constituir devem funcionar como numa orquestra, onde cada instrumento entra a seu tempo e desempenha sua função gerando harmonias e provocando sentimentos plurais nas pessoas e, ao final de cada peça musical, ficamos com a sensação de que fora preenchido um espaço anteriormente ocupado pelo vazio. E assim, apreende-se num certo sentido a metáfora contida na frase de Schopenhauer, atribuída por alguns a Göethe, de que Arquitetura é música congelada.

Desde que comecei a treinar para esta prova até chegar a data da travessia, terão transcorrido nove meses e durante esse período de gestação, espero que meu corpo se adapte cuidadosamente aos novos estímulos me tornando apta a percorrer os cem quilômetros que separam a linha de chegada do ponto de partida e, ao final dessa jornada eu possa trazer à luz um caminho que ajude a enfrentar meus medos e assim subir mais um degrau em busca da liberdade, mesmo sabendo que todos esses momentos irão se perder no tempo como lágrimas na chuva. (Time to die, 1982, Blade Runner film by Ridley Scott)

Blade Runner - Final scene, "Tears in Rain" Monologue

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