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Vestidas para correr

  • Foto do escritor: Denise Polonio
    Denise Polonio
  • 23 de ago. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 20 de ago. de 2020


Há pouco mais de uma década, já havia muitas. Hoje somos mais. Não saberia dizer exatamente o que move cada uma de nós a calçar um tênis e sair correndo em direções cujo destino interessa menos do que o percurso. Ainda que haja um objetivo de treino, que pode ser a participação em uma prova de curta, média ou longa distância, no asfalto ou na montanha, ou à procura de uma meta ambiciosa como a de se melhorar uma marca pessoal, arrisco dizer que o que realmente importa está relacionado ao caminho que nos leva a encontrar o que buscamos. E o que buscamos não está exatamente na linha de chegada. A corrida nos aproxima de um território de natureza selvagem e fascinante fazendo aflorar nossos instintos primitivos.

Embora boa parte das mulheres tenha diferentes e legítimas motivações para correr, há algo que nos conecta sem necessidade de comunicação. Algo que se expressa em nossos olhares quando se cruzam no trecho de um percurso qualquer e faz com que possamos nos enxergar em cada uma delas. Independente de nossa origem, formação, experiências adquiridas, constituição física e todo tipo de classificação capaz de nos distanciar umas das outras, sabemos que nada disso nos define verdadeiramente. O que move todas nós, o que faz com que nos coloquemos em trilha pelos caminhos que escolhemos, pode ser algo que nos é possibilitado enxergar em cenas de rara beleza, aquilo que faz com que nos lembremos da substância da qual somos feitas, aquilo que brota quando exaustas continuamos a olhar para frente e encontramos a força de que necessitamos para continuar. A potência de nossos instintos é única e é talvez a característica que mais nos define, porém há no feminino um modo de ser plural. Nossas diferenças se expressam no modo como nos preparamos para enfrentar nossos desafios e podem ser notadas através dos modelos de nossos tênis, de nossos shorts, tops e camisetas. Damos atenção aos detalhes e demonstramos isso na escolha da cor de uma meia em combinação com o elástico que prende nosso cabelo, sem jamais conseguir domesticá-lo, assim como aos nossos pensamentos. Mas apesar dessa preocupação aparentemente excessiva com o visual, ao final de uma prova, encharcadas de suor é que revelamos a nossa melhor face.

Como se sabe, faz pouco tempo que as mulheres foram aceitas em corridas de longa distância. A proibição era justificada com base no argumento de que o corpo feminino não teria forças suficientes para aguentar a distância de 42km. Entretanto este mesmo corpo sempre foi capaz de suportar transformações radicais e dores variadas ao gerar e dar origem a outra vida. Conseguimos provar que somos capazes de correr longas distâncias, mas curiosamente nunca saberemos o quanto um corpo masculino poderia ser tolerante às dores do parto. Felizmente hoje, podemos submeter nosso corpo à nossa vontade e disposição para correr a distância que julgamos suficiente para encontrar o que buscamos. Correndo deixamos de ser presas de um cotidiano predador para nos aventurarmos em busca do encontro com nossos instintos mais autênticos, nos libertando de tudo o que é capaz de aprisioná-lo. Assim nos lançamos à montanha, ao deserto, à neve, ou mesmo à selva urbana com os ouvidos em fina sintonia, o olhar aguçado e o olfato apurado em busca daquilo que nos inspira e faz transpirar. A dor e o cansaço físico ao final de uma prova ou de uma simples corrida é a parte mais importante de nossas conquistas porque traz à lembrança o esforço do qual fomos capazes, ou melhor, porque a dor lembra você que a alegria que sentiu era real, conforme a frase que ouvi no filme 2049.

Existe uma animação baseada na crônica do escritor e corredor uruguaio Marciano Durán, cuja narrativa faz uso de linguagem e expressões peculiares ao universo dos corredores, identificadas não apenas pelos que correm, mas capazes também de sensibilizar aqueles que nos observam. De forma bem humorada e sincera o autor transmite muito das expectativas e ansiedades compartilhadas por boa parte dos corredores, mas, sobretudo dá visibilidade às muitas das emoções experimentadas por esses loucos que correm. Difícil não nos identificarmos com uma série de situações com as quais podemos nos deparar enquanto corremos. Difícil também não perceber que várias dessas situações ganham contornos definidos e muito é revelado a partir de pequenos detalhes que vivenciamos ao realizarmos um trote na chuva, ou quando corremos nas ruas desviando de buracos e carros, quando molhamos nossos tênis nas ondas de uma praia, ou até mesmo do som que é produzido ao pisarmos em folhas secas. Através da corrida conseguimos romper a fronteira entre o interior e o exterior fazendo com que instantes da grande beleza fiquem gravados em nossa própria pele. Talvez este seja o verdadeiro truque. Aquele que faz com que a linha de chegada jamais se torne o ponto final.

Foto: Kathrine Switzer, a primeira mulher a completar, sob protestos e agressões a maratona de Boston, em 1967.


 
 
 

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