Sábado passado foram 26km com subidas. Cheguei na USP às 6 horas de um amanhecer prateado com Sr. Wilson ainda montando a base de apoio, esse nosso verdadeiro porto seguro carinhosamente apelidado por alguns como "a cocheira".

Alguns poucos corredores movimentavam a paisagem e mais alguns ciclistas que iniciam cedo seus treinos aproveitando a calmaria no campus a qual não dura mais do que a primeira volta de 8km.

Numa rápida mirada estaciono meu olhar no edificio da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, cuja construção pude acompanhar a partir de 2008 em minha visita semanal ao campus até sua inauguração há aproximadamente 2 anos. Uma obra elegante e sóbria, com volumes geométricos puros e bem articulados que surge na paisagem do campus como se sempre tivesse estado lá. Curioso como certos lugares fazem parte de nosso cotidiano e aos poucos vão passando quase que despercebidos. São Paulo é uma cidade feia, dizem. Inóspita, disse aquele apresentador global da televisão, que se esforça por tornar as mazelas humanas em banquete para as massas (sic). Como paulistana nata, acredito que de fato talvez nos falte aquela beleza pródiga e escancarada de cidades que contam com horizontes menos concretos. Mas isto não nos retira a poesia, apenas a torna menos óbvia. E foi assim que comecei meu treino. Disposta a prestar atenção no cenário deste filme cuja duração seria em torno de 2:40min.

Desta vez corri com música nos fones de ouvido, coisa que há muito não fazia e acabei por acrescentar trilha sonora a este filme imaginário onde os personagens eram todos aqueles que cruzaram as lentes discretas desta observadora durante o longo percurso que percorri. E assim fui, observando e redescobrindo, revisitando paisagens corriqueiras mas confesso que não é nada fácil manter a mente alerta o tempo todo. É, a corrida tem dessas coisas, a mente logo quer escapar correndo mais rápido que o nosso corpo e como disse Fernando Pessoa: "sou um guardador de rebanhos e o rebanho é os meus pensamentos."

Um amigo que pratica tênis me contou que uma das partidas que jogara no final de semana passado teve a duração de 2:40, ou seja, exatamente a mesma duração do meu treino de 26k. Disse ele que havia sido extremamente desgastante e com toda a reverência ao esporte que pratico, comentou: "Olha, sem desmerecer a corrida mas se manter focado e se exercitando durante todo esse longo período é realmente um esforço para o qual muitos não estariam preparados." É isso aí Julio Cezar, acho que você tem mesmo razão e é por isso que alguns treinadores fisicos insistem que ao corrermos devemos prestar atenção na respiração, nos batimentos cardíacos, na postura e em sinais do corpo que somente uma mente concentrada e focada irá perceber.

Vou ficando por aqui e termino este post com o trecho do poema citado.

"Sou um guardador de rebanhos, O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz."

( Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos, In Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa, 1946. )

Sobre o título deste post:

* BELEZA ROUBADA (Stealing Beauty) - É um filme norte americano de 1996, do gênero romance escrito e dirigido por Bernardo Bertolucci. Baseado na história do próprio diretor, recebeu várias indicações para prêmios dentre eles o Palma de Ouro- Cannes. Neste filme temos a estreante Liv Tyler e o já veterano Jeremy Irons nos papéis principais. É um belo filme, assitam.