Um treino orquestrado
- Denise Polonio 
- 25 de mai de 2015
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de nov de 2021

Sei que você nunca entendeu muito bem porque eu inventei de correr tanto, mas mesmo que parecessem estranhas as minhas escolhas, você sempre teve curiosidade e interesse por todas elas. Hoje é domingo e não vamos almoçar juntos, como quase sempre fazemos neste dia da semana, mas vou te contar aqui como foi correr trinta e dois quilômetros ontem.
Entrei no carro e fui logo ligando o rádio. Dirigi de casa até o campus da cidade universitária-USP, ao som das Bachianas No. 5, de Heitor Villa Lobos, certamente uma trilha sonora inusitada para o longo treino que tinha pela frente. Essa música, nossa velha conhecida, fez com que minha memória afetiva fosse imediatamente acionada e, concentrada na evolução sutil dos movimentos sonoros que meus ouvidos puderam captar, me projetei para um lugar imaginário, fisicamente inacessível. Lembrei-me de uma versão do músico Egberto Gismonti para esta obra e tudo nesse momento fez com que eu mergulhasse em um estado lírico e nostálgico. É curioso e intrigante o poder que a música tem de invocar memórias e, principalmente de fazer com que sejamos transportados para lugares não conhecidos e à épocas jamais vividas, como se nos transformássemos magicamente em personagens em busca de um autor, não é mesmo?
Desliguei o rádio e saí do carro com o prelúdio do treino desenhado em tonalidades pastéis o qual foi adquirindo aos poucos, contrastes marcantes por sua evolução e ritmo. Comecei a correr com uma amiga, companheira e cúmplice desta e de tantas outras vivências e, ao longo do percurso, compartilhamos não apenas sensações físicas mas também acabamos desenvolvendo uma técnica altamente evoluída de correr e conversar ao mesmo tempo, durante quase todo o percurso o qual durou para mim, três horas e vinte e cinco minutos.
Posso imaginar seu sorriso ao saber disto e até mesmo o que dirá: "Mas onde vocês arrumam tanto assunto e como conseguem fôlego para correr e falar ao mesmo tempo?"
Você também vai gostar de saber que outras pessoas, além de você que é meu pai, têm acompanhado meus relatos. No meio do percurso, fui abordada por uma corredora que ainda não conhecia pessoalmente, mas já a admirava por sua performance atlética e esta me contou que acompanha e lê os textos que escrevo, ou seja, conheci alguém que compartilha da mesma prática esportiva que eu venho praticando já há algum tempo e ela também se revelou ser minha leitora. Veja só quanta pretensão a minha, não é mesmo? Numa das passagens pela base de apoio da assessoria esportiva que me assiste e acompanha nos treinos, encontrei com outro corredor experiente, pai de um jovem atleta de elite, que disse também acompanhar as publicações deste blog.
De repente, me dei conta de que não estou falando sozinha e do quanto é bom escrever e melhor ainda, por saber que sou lida e consequentemente minhas experiências são compartilhadas com pessoas que mesmo incógnitas ou completamente desconhecidas, se transformam em fonte de inspiração tanto para a corrida como para o que escrevo. Segui correndo motivada não apenas para cumprir a distância pré-estabelecida, mas por também fazer com que esse momento fosse vivenciado de maneira a me transformar numa observadora de mim mesma e de tudo ao meu redor e, assim gerar a matéria prima para os posts que tenho feito há algum tempo, como sugeriu meu amigo corredor.
Incluídas na distância de trinta e dois quilômetros, havia quatro subidas e na última, não mais em companhia de minha amiga, tive uma desaceleração considerável fazendo com que eu entrasse numa espécie de adagio* que evoluiu para um allegro vivace* logo que recuperei o fôlego quando cheguei no trecho plano. Confesso que em certos momentos, tive ímpetos de parar considerando que já havia acumulado distância suficiente para pagar até mesmo as promessas que não fiz, mas logo tratei de afastar a ideia tão tentadora quanto traiçoeira e não me deixei cair nessa armadilha pois, para mim, um treino interrompido antes do tempo é como uma melodia inacabada, faz com que todo o esforço anterior perca o sentido.
Extraí força de cada fibra de meus músculos e segui num ritmo andante moderato* evitando conferir o cronômetro, o qual naquela altura do treino, parecia conspirar contra mim dando a impressão de que progredia de modo muito mais lento e arrastado no registro da distância percorrida, como no quadro de Salvador Dali, onde relógios derretidos colocam-se como metáfora para a dimensão de um tempo que se esquiva ante a casualidade da memória.
Acho que você, pai, vai sorrir novamente se eu lhe disser que faltando menos de quatro quilômetros para completar esse longo treino, a consciência de um grande incômodo nos pés fez aflorar em mim uma irritação que se tornou latente com as mínimas coisas e pessoas que surgiam inesperadamente em meu percurso, como se fossem notas dissonantes em meio a acordes musicais. Num rompante de inspiração, viajei ao passado onde me vi tocando um violão desafinado que você ouvia pacientemente, me incentivando a continuar ainda que houvesse muita lição a aprender. E assim fui até o relógio cravar nos trinta e dois quilômetros, concretizando-o num movimento allegro ma non troppo*.
* As expressões musicais utilizadas denotam as características de uma composição e variam de acordo com a velocidade ou compasso na qual a peça deve ser executada. Meu treino aconteceu como se eu vivenciasse na pele cada etapa de uma sinfonia.

A Persistência da Memória é o nome de uma da obra do grande artista surrealista Salvador Dalí, na qual se vê traduzida uma forma de arte crítica totalmente oposta a uma visão racional do mundo, colocando em questão a ideia de espaço e tempo fixos.

Trem Caipira é o disco do compositor multinstrumentista brasileiro Egberto Gismonti, na qual se percebe uma transição da obra clássica de Heitor Villa Lobos para uma versão em piano acústico preservando a beleza e pureza desta obra. Ganhei de meus pais esse disco em vinil, o qual possuo e guardo até hoje como uma relíquia que contribuiu para refinar e enriquecer meu repertório de apreciação musical.




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