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Lugar errado na hora certa

  • Foto do escritor: Denise Polonio
    Denise Polonio
  • 5 de jun. de 2016
  • 5 min de leitura

Atualizado: 29 de out. de 2021


Sem um objetivo definido no começo do ano, resolvi correr pela sexta vez a Meia Maratona da cidade do Rio de Janeiro, em 29 de maio de 2016. Inicio os treinos sem muita empolgação com a meta de baixar minha melhor marca para a distância que é de 1h54min06.

Um mês antes da prova, fiz uma viagem de 12 dias para a Italia com o objetivo de participar da Semana Internacional de Design em Milão, um outro tipo de maratona, mas sem medalha no final.

Cheguei a Roma numa quinta-feira e, ao iniciar minha peregrinação pela cidade, reparei numa quantidade razoável de banheiros químicos espalhados pelas ruas, fato que me causou um certo estranhamento como se aquilo fosse uma releitura da Cloaca Máxima*.

No dia seguinte, ao visitar as ruínas do Coliseu, me deparei com cartazes nos postes de iluminação anunciando a Maratona de Roma, marcada para acontecer naquele final semana e então compreendi, comemorei até, o fato daquelas cápsulas azuis enfileiradas serem apenas uma intervenção temporária na paisagem.

O treino para aquele sábado de acordo com a planilha, previa 14 quilômetros de rodagem, o qual eu havia inicialmente planejado fazer no Parque Villa Borghese, mas com os dias contados e tanto por conhecer, acabei utilizando para outros fins as fartas doses de carboidrato ingeridos nas osterias, trattorias e ristorantes e, apesar de não correr a distância programada, ampliei minhas conquistas intelectuais e culturais ao percorrer o passado e confrontá-lo com o presente como se fosse a versão feminina do arquiteto, personagem de Alec Baldwin, no roteiro do filme de Woody Allen (Para Roma, com amor).

Achando um desperdício não aproveitar para correr pelas ruas interditadas, deixei a cidade de Roma rumo a Florença, no domingo de manhã, um pouco antes da largada da Maratona. No caminho à pé para a estação de trem, cruzei com vários corredores que ansiosamente se dirigiam ao local de onde partiriam para conquistarem passo a passo 42 quilômetros do território romano e, na contra-mão do movimento das massas, me senti como uma plebéia dissidente de sua luta, mas a motivação de cruzar a linha de chegada na idílica região da Toscana, pequena e valiosa jóia de cidade produzida pela humanidade, fez com que meu espírito se enchesse de inspiração.

Em Florença, sem um percurso previamente definido num ritmo espontaneamente desacelerado e com o olhar deslumbrado como uma legítima flaneur*, deixei-me conduzir pelo sabor das emoções ao longo do Rio Arno onde alguns corredores disputavam espaço com turistas, tentando acelerar o tempo e tendo por testemunha os olhares das esculturas, estátuas e monumentos que observam a todos com um sorriso enigmático e complacente das mazelas do cotidiano.

Pensei em correr também afinal de contas esse cenário pleno de uma atmosfera de florescimento cultural e científico fez com que o mundo material, com suas belezas naturais e culturais, se apresentassem como um local a ser desfrutado com intensidade, mas estranhamente enquanto corro, um fenômeno que eu chamo de apagão se dá em minha consciência e não consigo me lembrar direito dos lugares por onde passo. Sendo assim, cedi aos mais puros e autênticos impulsos hedonistas, adiando o treino por mais uma vez e acumulando um saldo considerável de quilômetros à percorrer.

De partida para Milão, destino final dessa viagem, adquirí consciência de uma transitoriedade a qual lamento, mas que também alimenta, diante do apelo sedutor dos lugares e das pessoas, num contexto onde os encontros e desencontros surpreenderam e desafiaram minha percepção. Assim segui viagem em um movimento incessante, deparando-me frequentemente com a contradições de me sentir sozinha em meio as multidões, vendo tudo de uma maneira muito particular sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de apenas vivenciar ou sentir-me parte de um mundo tão complexo quanto fascinante.

Além de não ter fôlego e de não conseguir encontrar espaço para correr em cidades onde eu não tinha qualquer compromisso específico, treinar em Milão mostrou-se absolutamente inviável dada a quantidade de eventos, exposições e acontecimentos envolvendo arquitetura e design que visitei. Foram muitos quilômetros percorridos pelos pavilhões em Rho (bairro-município próximo à Milão onde ocorre o Salão Internacional do Móvel) e pelos bairros Tortona, Brera, Lembrate, Museu Trienalle. Apesar da ampla distância percorrida durante minha estadia nas cidades que visitei, nada disso me ajudaria a cruzar a linha de chegada no bairro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, porém a quantidade de informação e a oportunidade de constatar para onde corre a humanidade, me aproximou do mundo e me fez mais consciente dele.

De volta à São Paulo retomei os treinos, mas como se sabe, a liberdade tem seu peso e em consequência disso vi expandir meu território corporal transformando os treinos de velocidade num verdadeiro martírio. Aos poucos fui voltando à rotina, tentando não faltar aos treinos, mas meu corpo relutante não quis saber de recuperar o tempo perdido, sem conseguir capturar a minha alma que continuou a flanar motivada por seu próprio deleite. Minha falta de foco fez com que eu não tomasse as providências necessárias para chegar à cidade maravilhosa com o corpo e a alma mais leves para assim, correr a meia maratona consciente de meu lugar e de meu tempo.

A hora da prova chegou e eu não estava no lugar certo mas decidi que já era a hora de fazer meu corpo e minha alma voltarem à sintonia e então, na manhã do sábado que antecedeu a Meia Maratona da Cidade do Rio de Janeiro, acordei cedo, coloquei meu uniforme de corredora e corrí pelas ruas do bairro onde moro, na cidade de São Paulo. Ao final de 2hs00min49, sem a praia como paisagem, sem a companhia de outros corredores ou das equipes de apoio e sem recorde pessoal, completei mais uma prova, sem medalha no final, mas com muita força de vontade e mérito.

*Cloaca Máxima é uma das mais antigas redes de esgotos do mundo. Foi construída na antiga Roma nos finais do século VI a.C. pelos últimos reis de Roma que usufruíram da experiência desenvolvida pela engenharia etrusca para drenar as águas residuais e o lixo de uma das populosas cidades do mundo.

*O termo flâneur vem do francês e tem o significado de "vagabundo" que, por sua vez, vem do verbo flâner, que significa "para passear". Charles Baudelaire desenvolveu um significado para flâneur de "uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la". A idéia do flâneur tem acumulado importante significado como uma referência para compreender fenômenos urbanos e a modernidade. Walter Benjamin descreve o flâneur como um produto da vida moderna e da Revolução Industrial, sem precedentes, um paralelo com o advento do turismo. Benjamin se tornou o seu próprio exemplo, observou o social e estético durante longas caminhadas por Paris.

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